Catecismo Ortodoxo

Parte III

Apêndice

1 - Novas correntes no pensamento filosófico-teológico Russo
a - A questão do desenvolvimento dogmático

A questão do desenvolvimento dogmático de há muito tem sido objecto de discussão na literatura teológica: pode-se aceitar, do ponto de vista da Igreja, a ideia de desenvolvimento de dogmas? Na maioria dos casos isso é essencialmente uma disputa sobre palavras; uma diferença ocorre porque a palavra "desenvolvimento" é entendida de diferentes modos: entende-se desenvolvimento como o descobrimento de algo já dado ou como uma nova revelação?
Em geral, a visão do pensamento teológico é esse: a consciência da Igreja desde os Apóstolos até o fim da vida da Igreja, sendo guiada pelo Espírito Santo, é em sua essência única e a mesma. O ensinamento Cristão e o escopo da revelação divina são imutáveis. O ensinamento da fé, pela Igreja não se desenvolve, e a consciência da Igreja sobre si própria, com o passar dos séculos, não se torna maior, mais profundo e mais amplo do que era entre os Apóstolos. Não há a acrescentar ao ensinamento da fé passado pelos Apóstolos. Apesar da Igreja ser guiada sempre pelo Espírito Santo, não vemos na história da Igreja, e não esperamos ver, novas revelações teológicas.
Tal visão sobre a questão do desenvolvimento dogmático esteve presente, em particular, no pensamento teológico russo do século XIX. A aparente diferença de opiniões das várias pessoas sobre essa questão foi resultado das circunstâncias sob as quais ela foi discutida. Em discussões com os protestantes foi natural defender o direito da Igreja de "desenvolver" dogmas significando isso o direito dos Concílios de estabelecer e sancionar proposições dogmáticas. Nas discussões com os católicos romanos, de outro lado, foi necessário opor-se às inovações dogmáticas arbitrárias feitas pelos católicos romanos nos tempos modernos, e assim se opor ao principio da criação de novos dogmas que não tenham sido passados pela Igreja antiga. Em particular os Vetero-Católicos mais próximos da Ortodoxia, ambos rejeitando o dogma da infalibilidade papal - reforçaram no pensamento teológico russo o ponto de vista conservador sobre a questão do desenvolvimento dogmático, visão que não aprova o estabelecimento de novas definições dogmáticas.
Em 1880 e anos seguintes nós vemos uma aproximação diferente a essa questão. V. S Soloviev, que apoiava a união da Ortodoxia com a Igreja Romana desejando justificar o desenvolvimento dogmático da Igreja Católica Romana defendeu a ideia do desenvolvimento da consciência dogmática da Igreja. Ele argumentou assim: "O Corpo de Cristo muda e é aperfeiçoado" como todo organismo; a original "base" da fé é descoberta e esclarecida na história do Cristianismo; "A Ortodoxia permanece não só meramente pela antiguidade, mas pelo eternamente vivo Espírito de Deus".
Soloviev esteve inspirado para defender o ponto de vista do "desenvolvimento" não só por sua simpática pela Igreja Católica Romana, mas também por seu modo próprio de ver as questões filosóficas religiosa - suas ideias sobre Sofia, a sabedoria de Deus, sobre Deus-homem como um processo histórico, etc... Levado por seu próprio sistema metafísico, Soloviev nos anos seguintes a 1890 começou o ensinamento do "eterno feminino" que ele dizia, "não é meramente uma imagem inactiva da mente de Deus, mas um ser espiritual vivo que possui a totalidade de poder e acção. O processo completo do mundo e da história é o processo de sua realização e encarnação numa grande multiplicidade de formas e graus. O objecto celeste de nosso amor é só um, e é sempre para todo mundo e o mesmo, a eterna feminilidade de Deus" (As ideias de Soloviev podem ser superficialmente comparadas ao movimento de "libertação das mulheres" de hoje, cuja última tentativa nos círculos religiosos tem sido "de sexualizar" a Escritura removendo dela todas as referências à natureza "masculina" de Deus. Os movimentos de hoje, no entanto, não tocam realmente na filosofia ou teologia, permanecendo movimentos primitivamente de "liberação" social; ao passo que o pensamento de Soloviev é mais sério, sendo um tipo de ressurreição da antiga filosofia gnóstica: ambos, são igualmente estranhos na forma que suas ideias tomam, e ambos são concordantes em ver a necessidade de mudar os dogmas e expressões Cristãs tradicionais).
Assim uma série completa de novos conceitos começou a entrar no pensamento religioso russo, esses conceitos não evocam nenhuma resistência especial nos círculos teológicos russos, já que eles eram expressões mais como filosofia do que como teologia.
Soloviev por seus trabalhos literários e palestras foi capaz de inspirar interesse por problemas religiosos num vasto círculo da sociedade russa educada. No entanto, o interesse juntou-se a um desvio do autêntico modo de pensar Ortodoxo. Isso foi expresso por exemplo, nos "encontros religiosos filosóficos" de Petesburgo em 1901-1903. Nesses encontros, questões como as seguintes foram levantadas: "Pode-se considerar o ensinamento dogmático da Igreja já completo? Não podemos esperar novas revelações? De que maneira uma nova criatividade religiosa pode ser expressa no Cristianismo, e como ela pode ser harmonizada com a Sagrada Escritura e a Tradição da Igreja, com os decretos dos Concílios Ecuménicos, e os ensinamentos dos Santos Padres?" Especialmente sintomáticos foram as disputas a respeito do "desenvolvimento dogmático".
No pensamento religioso e social russo, no início do século vinte apareceu uma expectativa do despertar de uma "nova consciência religiosa" no solo Ortodoxo. Começava a ser expressa a ideia de que a teologia não deveria temer novas revelações, que a dogmática deveria usar uma base racional mais larga, que ela não poderia ignorar inteiramente as inspirações proféticas pessoais dos dias presentes, que deveria haver um alargamento do círculo dos problemas dogmáticos fundamentais, para que a dogmática pudesse apresentar uma completa visão do mundo teológica filosófica. As idéias excêntricas expressas por Soloviev receberam novos desenvolvimentos e mudanças, e o primeiro lugar entre elas foi dado ao problema da Sophiologia. Os mais destacados representantes dessa nova corrente foram o Padre Paul Florensky («The Pillar and Foundation of the Church» e outras obras) e Sergei N. Bulgakov, que mais tarde foi Arcipreste (seus últimos escritos «sophiológicos» incluem «The Unsetting Light, The unbuert Bush, Person ans Personality, The Friend of the Briegroom, The Lamb of God, The Comforter, e The Revelation of John»).
Em conexão com essas questões é natural que perguntemos: a teologia dogmática, em sua forma usual, satisfaz a necessidade do Cristão de ter uma completa visão do mundo? Se a dogmática recusa-se a reconhecer o princípio do desenvolvimento, ela não se torna uma coleção sem vida de dogmas separados?
Com toda segurança deve-se dizer que a espera das verdades reveladas que entram nos sistemas aceitos da teologia dogmática dá toda oportunidade para a formação de uma exaltada e ao mesmo tempo clara e simples visão do mundo. Teologia dogmática, construída na base de firmes verdades dogmáticas fala de um Deus pessoal. Que está inexplicavelmente perto de nós, que não precisa de intermediários entre si e a criação: ela fala do Deus na Santíssima Trindade "Que é sobre todos, e por todos e em todos" (Ef. 4, 6), do Deus que ama a sua criação, que ama a humanidade e é condescendente com nossas enfermidades, mas não priva as suas criaturas de liberdade; ela fala do homem e do género humano, do seu alto propósito e de suas exaltadas possibilidades espirituais e ao mesmo tempo do seu triste nível moral no tempo presente, de sua queda; ela apresenta caminhos e meios para o retorno, ao paraíso perdido, revelados pela Encarnação e morte na Cruz do Filho de Deus, e o caminho para adquirir a eternamente abençoada vida. Todas essas são verdades vitalmente necessárias. Aqui fé e amor, conhecimento e suas aplicações em acção, são inseparáveis.
A Teologia Dogmática não pretende satisfazer todos os pontos de curiosidade da mente humana. Não há dúvida para nosso olhar espiritual a Divina revelação revelou só uma pequena parte do conhecimento de Deus e do mundo espiritual. Nós vemos nas palavras do Apóstolo, "porque agora vemos por espelho em enigma" (1 Cor. 13, 12). Um incontável número de mistérios de Deus permanece fechado para nós.
Mas deve-se afirmar que as tentativas de alargar os limites da teologia, seja numa base mística ou racional, que apareceram tanto nos antigos quanto nos modernos tempos, não conduzem a um mais completo conhecimento de Deus e do mundo. Esses sistemas conduzem especulações mentais definidas e colocam a mente diante de novas dificuldades. A coisa principal no entanto, é a seguinte: opiniões nebulosas a respeito da vida interior em Deus, tais como são vistas em certos teólogos que entraram no caminho de filosofar na teologia, não se harmonizam com o imediato sentimento de reverência, com a consciência e sentimento da proximidade e santidade de Deus, e na verdade, elas sufocam esse sentimento.
No entanto, por essas considerações nós não negamos absolutamente todo tipo de desenvolvimento na esfera do dogma. O que, então é sujeito a desenvolvimento na dogmática?
A história da Igreja mostra que a quantidade de dogmas, no sentido estreito da palavra foi crescendo gradualmente. Não é que dogmas foram desenvolvidos, mas sim que a esfera de dogmas na história da Igreja foi se alargando até que ela chegou a seu próprio limite, dado pela Sagrada Escritura. Em outras palavras, o aumento foi na quantidade de verdades da fé que receberam uma formulação precisa nos Concílios Ecuménicos, ou em geral foram confirmados pelos Concílios Ecuménicos. O trabalho da Igreja nessa direcção consistiu na definição precisa das afirmações dogmáticas em seus esclarecimentos, em mostrar suas bases na Palavra de Deus, em encontrar suas confirmações na Tradição da Igreja, e declara-los obrigatórios para todos os fiéis. Nesse trabalho da Igreja o escopo das verdades dogmáticas sempre permaneceu um e o mesmo; mas em vista do surgimento de opiniões e ensinamentos não ortodoxos, a Igreja sanciona algumas afirmações dogmáticas que são Ortodoxas e rejeita outras que são heréticas. Não se pode negar que graças a tais definições dogmáticas o conteúdo da fé tornou-se mais claro na consciência das pessoas da Igreja e na própria hierarquia da Igreja.
Além do mais, o próprio aprendizado teológico é sujeito a desenvolvimento. A teologia dogmática pode usar vários métodos; ela pode ser suplementada por material para mais estudo; ela pode fazer um maior ou menor uso dos fatos da exegese (a interpretação dos fatos da Sagrada Escritura), de filologia bíblica, de história da Igreja, de escritos patrísticos, e assim também de conceitos racionais; ela pode responder mais completamente ou timidamente as heresias, falsos ensinamentos e a várias correntes de pensamentos religiosos contemporâneos. Mas o aprendizado teológico (como oposto á própria teologia) é um assunto exterior em relação à vida espiritual da igreja. Ele só estuda o trabalho da Igreja e seus decretos dogmáticos e outros. A teologia dogmática como um ramo do aprendizado pode se desenvolver, mas não pode desenvolver e aperfeiçoar um ensinamento da Igreja. (Pode-se ter uma analogia aproximada disso no estudo de qualquer escrita: «Pushkinologia», por exemplo, pode crescer, mas disso a soma de pensamentos e imagens colocados em seus trabalhos pelo próprio poeta não cresce). O florescimento ou declínio do aprendizado teológico pode coincidir ou falhar em coincidir com o nível geral, com a elevação ou declínio de vida espiritual na Igreja, em um ou outro período histórico: o desenvolvimento do aprendizado teológico pode ser impedido sem perda para a essência da vida espiritual. O aprendizado teológico não é chamado a guiar a Igreja na sua totalidade; é próprio para ele buscar e se manter estritamente de acordo com o encaminhamento dado pela consciência da Igreja.
É dado a nós o que é necessário para o bem de nossas almas. O conhecimento de Deus, na vida Divina e da Divina Providência, é dado aos homens no grau em que ele tem uma imediata explicação moral na vida. O Apóstolo ensina isso quando ele escreve: "Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade... pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência temperança, e à temperança paciência, e à paciência piedade, e à piedade amor fraternal, e ao amor fraternal caridade" (2 Ped. 1, 3-7). Para o Cristão a coisa mais essencial é a perfeição moral, tudo o mais que foi dado pela palavra de Deus e pela Igreja são meios para atingir esse objectivo fundamental.

b - Filosofia e Teologia

No pensamento teológico contemporâneo penetrou a visão que a teologia dogmática Cristã deveria ser suplementada, tornada "frutífera" e iluminada por uma base filosófica e que ela deveria aceitar conceito filosófico nela própria".
" Para justificar a fé de nossos pais, para elevá-la a um novo grupo e consciência racional" - esse é o modo pelo qual V. S. Soloviev define seu objectivo, assim formulado não haveria nada essencialmente digno de repreensão. No entanto, deve-se ser cuidadoso para não misturar duas esferas - aprendizado teológico e filosofia: tal mistura é capaz de conduzir alguém à confusão e eclipsar seu propósito, seu conteúdo e seus métodos.
Nos primeiros séculos do Cristianismo os escritores Cristãos e Padres da Igreja responderam largamente ás ideias filosóficas de seu tempo, e eles próprios usaram os conceitos que tinham sido trabalhados pela filosofia. Porque? Assim eles lançaram uma fonte entre a filosofia grega e a filosofia Cristã. O Cristianismo apresentou-se como uma visão do mundo que era para substituir as visões filosóficas do mundo antigo, ficando acima delas. Então, tendo se tornado no quarto século a religião oficial do estado, ela foi chamada pelo próprio estado para tomar o lugar de todos os sistemas de visões do mundo que existiram até aquela época. Essa é a razão porque, no Primeiro Concílio Ecuménico na presença do Imperador, ocorreu um debate dos professores da fé Cristã com um "filósofo".
Mas não poderia ser uma simples substituição (da filosofia pagã pela Cristã). A apologética Cristã tomou sobre si o objectivo de tomar posse do pensamento filosófico pagão dirigindo seus conceitos para o canal do Cristianismo. As ideias de Platão mostraram-se para os escritores Cristãos como um estágio preparatório no paganismo para a Revelação Divina. À parte isso, no curso das coisas, a Ortodoxia teve que combater o Arianismo, não tanto na base da Sagrada Escritura quanto por meio da filosofia, porque o arianismo havia tomado da filosofia grega seu erro fundamental - nomeadamente, o ensinamento do logos como um princípio intermediário entre Deus e o mundo; estando abaixo da divindade. Mas mesmo com tudo isso, a direcção geral do pensamento patrístico todo foi a base de todas as verdades da fé Cristã baseadas na Revelação Divina e não em deduções racionais e abstratas. São Basílio, o Grande, em seu tratado, «What Benefictcan Be Drawn from Pagan Works», dá exemplo de como usar o material instrutivo contido nesses escritos. Com o espalhamento universal dos conceitos Cristãos, o interesse na filosofia grega gradualmente morreu nos escritos Patrísticos.
E, isso era natural. Teologia e filosofia são distintas antes de tudo por seu conteúdo, a pregação do Salvador na terra declarou para os homens não ideias abstratas, mas uma vida nova para o Reino de Deus; a pregação dos Apóstolos foi a pregação da salvação em Cristo. Por essa razão, a teologia dogmática Cristã tem como seu principal assunto o completo exame do ensinamento da salvação, sua necessidade, e o caminho para ela. Em seu conteúdo básico, a teologia é soteriológica (do grego «soteria» - salvação). Questões de ontologia (a natureza da existência), de Deus em si, da essência do mundo e da natureza do homem, são tratadas na teologia dogmática de maneira muito limitada. Isso não é somente porque elas (essas questões) nos são dadas na Sagrada Escritura de forma limitada (e, em relação a Deus, em forma escondida), mas também por razoes psicológicas. Silêncio referente ao interior em Deus é uma expressão do vivo sentimento da omnipresença de Deus, uma reverência diante de Deus, temor de Deus. No Velho Testamento esse sentimento levou ao temor de até mesmo mencionar o nome de Deus. A área mais importante da contemplação deles era a da verdade da Santíssima Trindade revelada no Novo Testamento, e a teologia Cristã Ortodoxa como um todo seguiu esse caminho.
A filosofia segue um caminho diferente. Está principalmente interessada precisamente em questões de ontologia: a essência da existência, a relação entre o princípio absoluto e o mundo e suas manifestações concretas, assim por diante. A filosofia por sua natureza vem de «skepsis», de dúvida sobre o que nossas concepções nos contam; e mesmo quando chega a fé em Deus (na filosofia idealista) ela raciocina sobre Deus "objectivamente", como sobre um assunto de conhecimento frio, um assunto que é sujeito a exame e definição racionais, a uma explanação de sua essência e de sua relação como existência absoluta com o mundo de manifestações.
Essas duas esferas - teologia dogmática e filosofia - também devem ser distinguidas por seus métodos e fontes.
A fonte da teologia é a revelação divina, contida na Sagrada Escritura e Sagrada Tradição. O carácter fundamental da Sagrada Escritura e Tradição depende de nossa fé na verdade delas A teologia reúne e estuda o material que é encontrado nessas fontes, sistematiza esse material e o divide em categorias apropriadas, usando nesse trabalho os mesmos meios que as ciências experimentais usam.
A filosofia é racional e abstracta. Ela procede não da fé, como a teologia, mas busca se basear nos indisputáveis axiomas fundamentais da razão deduzindo deles outras conclusões, ou então sobre factos da ciência ou do conhecimento geral humano.
Assim sendo pode-se simplesmente dizer que a filosofia não é capaz de elevar a religião dos pais ao grau do conhecimento.
No entanto, pelas distinções mencionadas acima, não se deve negar inteiramente a cooperação dessas duas esferas. A própria filosofia chega à conclusão que há limites que o pensamento humano por sua própria natureza não é capaz de ultrapassar. O próprio facto que a historia da filosofia durante quase toda sua duração tem sido duas correntes - idealística e materialista - mostra que seus sistemas dependem de uma predisposição pessoal de mente e coração; em outras palavras que elas estão baseadas sobre algo que está além dos limites da prova. O que está além dos limites na prova é a esfera da fé, a fé que pode ser negativa e não religiosa, ou positiva e religiosa. Para o pensamento religioso, o que está "acima" é a esfera da Revelação Divina.
Nesse ponto aparece a possibilidade de uma união das duas esferas do conhecimento, teologia e filosofia. Assim a filosofia religiosa é criada; e no Cristianismo isso significa filosofia Cristã.
Mas a filosofia religiosa Cristã tem um caminho difícil: juntar liberdade de pensamento, como um princípio da filosofia, com fidelidade aos dogmas e todo o ensinamento da Igreja. "Vai pelo caminho livre, qualquer que a mente livre te leve" diz a obrigação do pensador; "Sê fiel a Verdade Divina", sussurra para ele a obrigação do Cristão. Desse modo, pode-se sempre esperar que na realização prática os compiladores dos sistemas de filosofia estarão forçados a sacrificar, desejando ou não, os princípios de uma espera em favor da outra. A consciência da Igreja, recebe bem tentativas sinceras de criar uma visão do mundo filosófica Cristã harmónica; mas a Igreja as vê como criações privadas, pessoais, e não sanciona, a elas com sua autoridade. Em todo caso é essência que haja uma precisa distinção entre a teologia dogmática e a filosofia Crista, e toda tentativa de tornar dogmática em filosofia Cristã deve ser decisivamente rejeitada. (Provavelmente a tentativa mais bem escolhida do ponto de vista Ortodoxo, na criação de uma verdadeira filosofia Cristã no século XIX na Rússia, é encontrada nos ensaios filosóficos de I. M. Kireyevsky (+ 1856), um filho espiritual do Staretz Macarius do Optina que também ajudou ao Staretz nas traduções de Optina dos trabalhos dos Santos Padres. Infelizmente, os pensamentos religiosos russos, na segunda metade do século XIX não seguiram a liderança de Kireyevsky; se tal tivesse acontecido, a Ortodoxia russa teria sido poupada das especulações neo-gnósticas de Soloviev e seguidores tais como Bulgarov e Berdyaev, cuja influência continua nos círculos Ortodoxos "liberais" até os dias de hoje. A filosofia de Kyreyevsky pode muito bem ser considerada a resposta Ortodoxa a essas especulações. (Ver Padre Alexey Young, «A Man is his Faith», London, 1980)).

c - Sobre o sistema religioso-filosófico de Vladimir S. Soloviev

O impulso para as novas correntes do pensamento filosófico russo, foi dado, como foi dito, por Vladimir S. Soloviev, que colocou como seu objectivo "justificar a fé nos Padres" diante da razão de seus contemporâneos. Infelizmente, ele fez uma série completa de desvios directos do modo de pensamento Cristão Ortodoxo, muitos desvios dos quais foram aceitos e até mesmo desenvolvidos por seus sucessores
Aqui está uma série de pontos da filosofia de Soloviev que são completamente diferentes e que até mesmo se afastam do ensinamento da fé confessada pela Igreja.
1 - O Cristianismo é apresentado por ele como o mais alto grau de desenvolvimento das religiões. De acordo com Soloviev, todas as religiões são verdadeiras, mas unilaterais; o Cristianismo sintetiza os aspectos positivos das religiões precedentes. Ele escreve: "Assim como a natureza exterior só é revelada gradualmente para a mente do homem e para o género humano, como resultado disso nós devemos falar também de desenvolvimento experimental ou ciência natural, assim também o princípio divino é revelado gradualmente para a consciência do homem, e nós devemos falar da experiência religiosa e do pensamento religioso. Desenvolvimento religioso é um processo positivo e objectivo, uma real e mútua relação entre Deus e o homem - o processo religioso, pode em si mesmo ser uma mentira ou um erro. "Falsa religião é em termos uma contradição".
2 - O ensinamento da salvação do mundo, na forma que é dado pelos Apóstolos, é posto de lado. De acordo com Soloviev, Cristo veio á terra não para "salvar a raça humana". Ao invés, ele veio para elevar a raça humana a um grau mais alto na manifestação gradual do principio divino do mundo - o processo de ascensão e deificação do homem e do mundo. Cristo é a mais elevada ligação numa série de teofanias, e ele coroa todas as teofanias prévias.
3 - A atenção da teologia de acordo com Soloviev é dirigida para o lado ontológico da existência, isto é, para a vida de Deus em si próprio, e por conta da falta de evidência para isso na Sagrada Escritura, seus pensamentos dirigem-se para construções arbitrárias que são racionais ou baseados na imaginação.
4 - Na vida Divina é introduzida uma essência que fica na fronteira entre o Divino e o mundo criado: isso é chamado Sophia.
5 - Na vida divina é introduzida uma diferença entre os princípios masculino e feminino. Em Soloviev esse ponto ainda é fraco. O Padre Paul Florensky, seguindo Soloviev, apresenta Sofia assim: "Esse é um grande Ser Real e Feminino que, não sendo nem Deus nem o eterno Filho de Deus, nem um anjo, nem um homem santo, recebeu veneração tanto do Culminador do Velho Testamento e do Fundador do Novo" (The Pillar anda Fundation of Truthi).
6 - Na vida Divina é introduzido um princípio elementar de luta, que compele Deus o próprio Logos a participar em um progresso definido e subordina Deus a esse processo, que é conduzir o mundo para fora da condição de materialismo puro e inércia para uma forma mais elevada e mais perfeita de existência.
7 - Deus, como o Absoluto, como Deus o Pai, é apresentado como distante e inacessível para o mundo e para o homem. Ele vai embora do mundo, em contradição com a palavra de Deus, para uma esfera de existência inatingível que, como existência relativa, como o mundo dos fenómenos. Por isso, de acordo com Soloviev, é necessário um Intermediário entre o Absoluto e o mundo. É chamado "logos" que foi encarnado em Cristo.
8 - De acordo com Soloviev, o primeiro Adão uniu em si a natureza humana, em um modo similar á relação mutua do Deus - homem no Verbo encarnado; no entanto, ele violou essa relação mútua. Se isso é assim, então deificação do homem, não é só uma graça? Deus-homem, é uma restauração das duas naturezas. Mas isso não está de acordo com o ensinamento da Igreja - um ensinamento que entende a deificação só como um recebimento de graça. São João Damasceno escreve: "Não houve e nunca haverá outro homem composto de Divindade e humanidade", fora Jesus Cristo.
9 - Soloviev escreve: "Deus é o Criador Todo Poderoso e o «Pantocrator», mas não o condutor da terra e da criação que dela procede: "A Divindade... é incomensurável com as criaturas terrestres e pode ter uma relação prática e moral (autoridade, domínio, governança) somente através da mediação do homem, que como um ser tanto divino quanto terrestre é comensurável tanto com a Divindade quanto com a natureza material. Assim, o homem é o sujeito indispensável no verdadeiro domínio de Deus" (The Hystory and Future of Theocracy). Essa afirmação é inaceitável do ponto de vista da glória e poder de Deus e, como tem sido dito, ela contradiz a Palavra de Deus. De facto, ela não corresponde se quer a simples observação. O homem sujeita a natureza a si não em nome de Deus, como um intermediário entre Deus e o mundo, mas para seus próprios propósitos e necessidades egoístas.
Os poucos pontos mencionados aqui de divergência entre as visões de Soloviev e o ensinamento da Igreja indica a inaceitabilidade do sistema religioso de Soloviev como um todo para a consciência Ortodoxa.

d - O ensinamento da Sabedoria de Deus na Sagrada Escritura

A palavra «Sophia» - sabedoria, é encontrada nos livros sagrados do Velho Testamento (na tradução grega) e do Novo Testamento.
No Novo Testamento é usada em três significados:
1 - No sentido amplo de sabedoria, entendimento: "E Jesus se fortaleceria em espírito, cheio de sabedoria" (Lc. 2, 40); "Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos" (Lc. 7, 35).
2 - No significado da sábia economia de Deus expressa na criação do mundo, em sua providência sobre o mundo, e na salvação do mundo do pecado: "Ó profundidade das riquezas tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Porque quem compreendeu o intento do Senhor? Ou quem foi Seu conselheiro?" (Rom. 11, 33-34); "Mas falamos a sabedoria de Deus oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória" (1 Cor. 2, 7).
3 - Em relação ao Filho de Deus como a Sabedoria Hipostática de Deus: "Mas pregamos-lhes a Cristo crucificado... Cristo poder de Deus e sabedoria de Deus" (1 Cor. 1, 23-24); "Que para nós foi feito por Deus sabedoria" (1 Cor. 1, 30).
No Velho Testamento nós encontramos em muitos lugares afirmações acerca da sabedoria. Aqui também há três significados para este termo. Em particular, sabedoria é falada no livro dos Provérbios e nos livros Apócrifos: A Sabedoria de «Joshua», Filho de «Sirach».
Na maioria dos casos, a sabedoria humana é apresentada aqui como um dom de Deus que se deve manter excepcionalmente cuidada. Os próprios títulos dos livros, a "Sabedoria" de Salomão e a Sabedoria de «Joshua», Filho de «Sirach», indica em que sentido - normalmente, no sentido de sabedoria humana - deve-se entender essa palavra aqui. Em outros livros do Velho Testamento episódios separados são citados, os quais descrevem especialmente a sabedoria humana - por exemplo, o famoso julgamento de Salomão.
Os livros acima mencionados introduzem-nos na direcção do pensamento dos professores inspirados por Deus no povo judeu; esses professores inspiraram o povo a ser guiado pela razão, não se entregar a cegas inclinações e paixões, e manter firmemente suas acções ligadas aos comandos da prudência, julgamento correcto, lei moral, e às bases firmes na vida pessoal, familiar e pública.
Uma grande parte do livro dos Provérbios é dedicada a esses assuntos. O título desse livro, "Provérbios", previne o leitor que ele encontrará nele meios de exposição figurativos, metafóricos e alegóricos. Na introdução do livro, depois de indicar que ele é para "conhecimento, sabedoria, instrução", o autor expressa a certeza que "um homem sábio... entenderá uma parábola, e um discurso obscuro, as palavras dos sábios, e suas adivinhações" (1, 6, Septuaginta) - Isso é, ele entenderá seu sentido figurativo, alegórico, sem tomar todas as imagens no sentido literal.
E de facto, adiante no livro, é revelada uma abundância de imagens e personificações na aplicação da "sabedoria que o homem pode possuir. Adquire sabedoria, adquire entendimento... diz à sabedoria, tu és minha irmã; e ao entendimento chama teu parente" (Prov. 7, 4). "Não a desampares, e ela guardar-te-á; ama-a e ela conservar-te-á... exalta-a e ela exaltar-te-á, e abraçando-a tu, ela honrar-te-á; dará a tua cabeça um diadema de graça, e uma coroa de glória te entregará" (Prov. 4, 6.8-9 Septuaginta). O mesmo tipo de pensamento sobre a sabedoria humana está contido na Sabedoria de Salomão.
Está claro que todos esses dizeres sobre sabedoria de modo algum podem ser entendidos como o ensinamento de uma sabedoria pessoal, a alma do mundo, no sentido «sophiológico». Um homem a possui, a obtém, a perde; ela serve a ele; seu início é chamado "temor de Deus"; e lado a lado com a sabedoria é também nomeado de "entendimento" e "instrução" e "conhecimento".
E de onde vem a sabedoria? Como tudo mais no mundo, tem uma fonte única: Deus é "o guia até da sabedoria e o corrector do sábio" (Sabedoria de Salomão 7, 15).
Um segundo grupo de proclamações na Sagrada Escritura refere-se à sabedoria de Deus, que é a sabedoria de Deus em si. Idéias da sabedoria em Deus estão intercaladas com ideias da sabedoria no homem.
Se a dignidade do entendimento e sabedoria no homem é tão exaltada, quão majestosa ela é então em Deus! O escritor usa as mais majestosas expressões possíveis de modo a apresentar o poder e grandeza da sabedoria Divina. Aqui ele faz um largo uso de modo a apresentar o poder e grandeza da sabedoria Divina. Aqui ele faz um largo uso de personificação. Ele fala da grandiosidade dos planos Divinos que, de acordo com nossas concepções humanas, parecem ter precedido a criação, porque a sabedoria de Deus está na base de tudo o que existe, por essa razão ela está antes de tudo, antes de qualquer coisa que existe. "O Senhor me possui no princípio dos seus caminhos, e antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui ungida, desde o princípio, antes do começo da terra, antes de fazer abismos... antes dos montes... eu fui gerada. Quando Ele preparava os céus, ai estava eu" (Prov. 8, 22-25.27 Septuaginta). O autor no livro do Génesis fala da beleza do mundo, enquanto expressa em imagens o que foi dito da criação, ("era muito bom"). Ele diz em nome da sabedoria: "Então eu estava com Ele e era Seu aluno: e era cada dia as suas delicias, folgando perante ele em todo o tempo" (Prov. 8, 30).
Em todas as imagens da sabedoria citadas acima, e outras similares, não há base para se ver num sentido directo nenhum ser espiritual pessoal, distinto de Deus, uma alma do mundo, ou ideia do mundo. Isso não corresponde às imagens dadas aqui: uma "essência do mundo" ideal não poderia ser dita "presente" na criação do mundo (ver a Sabedoria de Salomão 9, 9); somente alguma coisa exterior tanto ao Criador quanto à criação poderia estar "presente". Da mesma forma, ela não poderia ser um "implemento" da criação se ela em si é a alma do mundo criado. Por essa razão, nas expressões citadas acima é natural ver-se personificações (um dispositivo literário), ainda que elas sejam tão expressivas a ponto de chegarem perto de «hypostases» ou pessoas reais.
Finalmente, o escritor do livro de Provérbios é profeticamente exaltado em pensamento até a prefiguração da Economia de Deus no Novo Testamento que é revelada na pregação do salvador do mundo, na salvação do mundo e do género humano, e na criação da Igreja do Novo Testamento. Essa prefiguração é encontrada no nono capítulo de Provérbios: "A Sabedoria já edificou a sua casa, já lavrou as suas sete colunas. Já sacrificou as suas vítimas, já misturou o seu vinho..." (Prov. 9, 1-2, Septuaginta). Essa magnífica imagem é igual em poder às profecias referentes ao Salvador nos profetas do Velho Testamento.
Desde que a economia na salvação foi realizada pelo Filho de Deus, os Santos Padres da Igreja, e, seguindo eles os interpretadores Ortodoxos do livro dos Provérbios em geral, referem-se ao nome "sabedoria de Deus" que essencialmente pertence à Santíssima Trindade como um todo, à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Filho de Deus, como o Realizador do Conselho da Santíssima Trindade.
Por analogia com essa passagem profética, as imagens do livro de Provérbios, que são indicados acima referentes à sabedoria de Deus (no capitulo 8) são também interpretadas como se aplicando ao Filho de Deus. Quando os escritores do Velho Testamento, para quem o mistério da Santíssima Trindade não estava inteiramente revelado, dizem "Em sabedoria Ele os fez a todos " - para quem acredita no Novo Testamento, um Cristão, no nome "Verbo" e no nome "Sabedoria" é revelada a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Filho de Deus.
O Filho de Deus, como uma «hipóstase» da Santíssima Trindade, contem em si todos os atributos divinos na mesma plenitude do Pai e do Espírito Santo. No entanto, tendo manifestado esses atributos para o mundo em sua criação e sua salvação, Ele é chamado de Sabedoria Hipostática de Deus. Na mesma base, o Filho de Deus, pode também ser chamado de Amor Hipostático (ver São Simeão, o Novo Teólogo, Homilia 53); Luz Hipostática ("andai [na luz] enquanto tendes a luz" (Jo. 12, 35), Vida Hipostática ("Tu deste à luz a Vida Hipostática" - Cánon da Anunciação, 8); e Poder Hipostático de Deus ("lhes pregamos a Cristo, poder de Deus", 1 Cor. 1, 24).

 

Arcebispo Primaz Katholikos

S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)


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Última actualização deste Link em 01 de Outubro de 2011