São Gregório Palamas e a Tradição dos Padres

 

Seguindo os Padres…

Seguindo os SANTOS PADRES "…Era normal, na Igreja primitiva, se introduzir afirmações doutrinais por frases como esta. O Decreto de Calcedónia abre precisamente com estas palavras. O Sétimo Concílio Ecuménico introduz sua decisão a respeito dos Santos Ícones de maneira mais elaborada: "Seguindo o ensinamento Divinamente inspirado dos Santos Padres e a Tradição da Igreja Católica..." A didaskalia dos Padres é o formal e normativo termo de referência.
Porém, isto era muito mais do que um simples "apelo à Antiguidade." De facto, a Igreja sempre enfatizou a permanência de sua fé através dos séculos, desde o princípio. Esta identidade, desde os tempos apostólicos, é o sinal mais conspícuo e simbólico da fé correcta — sempre a mesma. No entanto, Antiguidade de per si não é prova adequada da verdadeira fé. Além disso, a mensagem Cristã foi obviamente uma "novidade" chocante para o "mundo antigo," e, de facto, uma chamada para uma radical "renovação." O "Velho" tinha passado, e tudo tinha que ser "feito Novo." De outro lado, heresias podiam também fazer apelo ao passado e invocar a autoridade de certas "tradições." Na verdade, as heresias ficavam, com frequência, persistindo no passado. Fórmulas arcaicas podem frequentemente ser perigosamente enganadoras. Vincent de Lerins estava plenamente consciente deste perigo. Será suficiente citar esta patética passagem dele: "E agora, que surpreendente inversão de situação! Os autores da mesma opinião são julgados católicos, mas os seguidores — heréticos; os mestres são absolvidos, os discípulos são condenados; os escritores dos livros serão filhos do Reino, seus seguidores irão para a Gehena" (Commonitorium, capítulo 6). Vincent tinha em mente, por certo, São Cipriano e os Donatistas. O próprio São Cipriano enfrentou a mesma situação. "Antiguidade" como tal pode acontecer ser simplesmente um inveterado prejuízo: "nam antiquitas sine veritate vetustas erroris est (Epístola 74). Quer dizer — Antiguidade sem verdade é um erro antigo, ou seja, "velhos costumes" em si não garantem a verdade. "Verdade" não é um simples "hábito".
A verdadeira tradição só é tradição da verdade, traditio veritatis. Esta tradição, segundo São Ireneu, é baseada em, e assegurada por, aquele charisma veritatis certum (carisma seguro da verdade), que foi "depositado" na Igreja desde do inicio desta e que foi preservado pelo ininterrupto ministério episcopal. "Tradição" na Igreja não é a continuidade da memória humana, ou a permanência de ritos e hábitos. É uma tradição viva — depositum juvenescens, na frase de São Ireneu. Consequentemente, ela não pode ser considerada inter mortuas regulas [entre regras mortas]. Finalmente, a tradição é a presença permanente do Espírito Santo na Igreja, a continuidade do Divino direccionamento e iluminação. A Igreja não é limitada pela "letra". Ao invés, ela é movida constantemente pelo "Espírito". O mesmo Espírito, o Espírito de Verdade, Que "falou pelos Profetas", que guiou os Apóstolos, ainda está continuadamente guiando a Igreja na sua total compreensão e entendimento da Divina verdade, de glória em glória.
"Seguindo os Santos Padres"... Isto não é uma referência a alguma tradição abstracta em fórmulas e proposições. É principalmente um apelo para um santo testemunho. Na verdade, nós apelamos para os Apóstolos, e não simplesmente para uma "Apostolicidade" abstracta. De maneira similar nós nos referimos aos Padres. O testemunho dos Padres se refere, intrínseca e integralmente, para a própria estrutura da crença Ortodoxa. A Igreja está igualmente comprometida com o kerygma dos Apóstolos e com os dogmas dos Padres. Devemos citar neste ponto um admirável hino antigo (provavelmente da lavra de São Romano o Melódio). "Preservando o kerygma dos apóstolos e o dogma dos Padres, a Igreja selou a fé una e usando a túnica da verdade ela forma justamente o brocado da teologia celeste e louva o grande mistério da piedade".

A Mente dos Padres

A Igreja é, de facto, Apostólica. Mas ela é também "Patrística". Ela é, intrinsecamente, "a Igreja dos Padres". Estas duas "posições" não podem ser separadas. Somente por ser "Patrística" a Igreja é verdadeiramente "Apostólica". O testemunho dos Padres é muito mais do que um simples atributo histórico, uma voz do passado. Citemos um outro hino — do ofício dos Três Hierarcas. "Pela palavra do conhecimento vós compusestes os dogmas que os pescadores primeiro estabeleceram em simples palavras, com o conhecimento dado pelo poder do Espírito, pois assim nossa simples piedade teve que adquirir composição". Existem, como se fossem, dois estágios básicos na composição na proclamação da fé Cristã. "Nossa fé simples teve que adquirir composição". Existiu uma compulsão interna, uma lógica interior, uma necessidade interior, nesta transição de kerygma para dogma. Na verdade, o ensinamento dos Padres, e os dogmas da Igreja, são ainda a "simples mensagem", que foi então liberada e depositada, de uma vez por todas, pelos Apóstolos. Mas agora está, como se fosse, própria e perfeitamente articulada. A pregação Apostólica é mantida viva na Igreja, não simplesmente preservada. Neste sentido, o ensinamento dos Padres é uma categoria permanente de existência Cristã, uma constante e definitiva medida do critério da fé correcta. Os Padres não são somente testemunhas da fé antiga, testes antiquitatis. Ao invés, eles são testemunhas da verdadeira fé, testes veritatis. A "mente dos Padres" é um termo intrínseco de referência da teologia Ortodoxa, não menos que as palavras da Santa Escritura, e na verdade, nunca separada dela. Como foi dito muito bem, "a Igreja Católica de todos os tempos não é meramente uma filha da Igreja dos Padres — ela é e permanece a Igreja dos Padres".

O Carácter Existencial da Teologia Patrística

A marca distintiva principal da Teologia Patrística foi seu carácter "existencial", se nós podemos usar este neologismo actual. Os Padres "teologizaram," como São Gregório de Nazianzeno coloca, "na maneira dos Apóstolos, e não na maneira de Aristóteles" — αλιευτικωςριστοτελικως (Hom. 23, 12). Sua teologia era ainda uma "mensagem", um kerygma. A teologia deles ainda era uma "teologia kerigmática," ainda que ela, frequentemente, fosse arranjada logicamente e suprida com argumentos intelectuais. As referências definitivas eram ainda, segundo a visão da fé, ao conhecimento e experiência espiritual. Separada da vida, a teologia Cristã não leva convicção, e se separada da vida da fé, a teologia pode degenerar em dialéctica vazia, numa vã polilogia, sem nenhuma consequência espiritual. A teologia Patrística era enraizada existencialmente no decisivo comprometimento da fé. Não era uma disciplina "auto-explanatória" que poderia ser apresentada argumentativamente, isto é aristotelicamente, sem nenhum compromisso espiritual prévio. Na época da disputa teológica e de debates incessantes, os grandes Padres Capadócios protestaram formalmente contra o uso da dialéctica, dos "silogismos Aristotélicos," e lutaram para referir a teologia de volta para a visão da fé. A teologia Patrística só poderia ser "pregada" ou "proclamada" — pregada do púlpito, proclamada também nas palavras das orações e dos ritos sagrados, e assim manifestada na estrutura total da vida Cristã. Teologia deste tipo não pode nunca ser separada da vida de oração e do exercício das virtudes. "O clímax da pureza é o início da teologia", como coloca São João Clímaco: τελος δε αγνειας υποθεσις θεολογιας (Scala Paradisi, grau 30).
De outro lado, teologia deste tipo é sempre "propedêutica" já que seu último objectivo e propósito é procurar e reconhecer o Mistério do Deus Vivo, e, de facto, ser testemunha disto, em palavras e actos. "Teologia" não é um fim em si. Ela é sempre somente um caminho. Teologia, e até os "dogmas" não são mais do que um "contorno intelectual" da verdade revelada, e um testemunho "noético" dela. Somente em um ato de fé este contorno é preenchido com conteúdo. Formulas Cristológicas são significativas somente para aqueles que encontraram o Cristo Vivo, e receberam um conhecimento Dele como Deus e Salvador, e por fé, estão habitando Nele, em Seu Corpo, na Igreja. Neste sentido a teologia nunca é uma disciplina auto-explanatória. Ela está constantemente apelando para a visão da fé. "O que nós vimos e ouvimos nós anunciamos para vós". Separadas deste "anuncio" as fórmulas teológicas são vazias e sem consequência. Pela mesma razão, estas fórmulas nunca podem ser tomadas "abstractamente", isto é, fora do contexto total da crença. É desorientador individualizar afirmações particulares dos Padres, e destacá-las da perspectiva total da qual elas foram, realmente, proferidas, assim como é desorientadora a manipulação com citações individualizadas das Escrituras. É um hábito perigoso "citar os Padres", isto é, seus ditos e frases isoladas, fora daquela colocação concreta da qual só eles têm o total e apropriado significado e estão verdadeiramente vivos. "Seguir" os Padres, não significa simplesmente "citá-los". "Seguir" os Padres significa adquirir sua "mente", o phronema deles.

O Significado da "Época" dos Padres

Agora nós atingimos o ponto crucial. O nome "Igreja dos Padres" é normalmente restrito aos professores ou doutores da Igreja Antiga. E actualmente é assumido que a autoridade deles depende de sua "antiguidade", de sua proximidade relativa da "Igreja Primitiva", da "Época" inicial da Igreja. Já São Jerónimo teve que contestar esta ideia. De facto, não houve decréscimo de "autoridade" nem nenhum decréscimo de competência e conhecimento espiritual, no curso da história Cristã. Na verdade, porém, esta ideia de "decréscimo" afectou fortemente o pensamento teológico moderno, porque é, com frequência, assumida a Igreja Primitiva como mais próxima da fonte da verdade. Como admissão da nossa própria falha e inadequação, como um acto de humilde auto-crítica, tal assunção é saudável e útil. Mas é perigoso fazer disto um ponto de partida ou mesmo a origem da nossa "teologia da história da Igreja", ou mesmo da nossa teologia da Igreja, porque a Época dos Apóstolos deve reter esta posição única. No entanto, ela foi simplesmente um começo. É largamente assumido que a "Época dos Padres" também terminou, e de acordo com esta ideia ela é encarada como simplesmente uma formação antiga, "antiquada" em certo sentido, e "arcaica". O limite da Época Patrística é definido variadamente. É normal se olhar para São João Damasceno como o "último Padre" no Oriente, e São Gregório Dialoguista ou São Isidoro de Sevilha como os "últimos" no Ocidente. Esta periodização tem sido contestada correctamente nos últimos tempos. Não deveria, por exemplo, ao menos São Teodoro o Estudita, ser incluído entre os "Padres"? Mabillon sugeriu que São Bernardo de Claraval, o Doutor melífluo, foi o "último" dos Padres, e seguramente não desigual aos anteriores. Na verdade, é mais do que uma questão de periodização. Do ponto de vista Ocidental a "Época dos Padres" foi sucedida, e mesmo trocada pela "época dos Eruditos" que foi um passo adiante essencial. Desde o surgimento do Escolasticismo a "teologia Patrística" ficou antiquada, tornou-se realmente "época passada", uma espécie de prelúdio arcaico. Este ponto de vista, legitimado pelo Ocidente, tem sido, mui infelizmente, aceito também por muitos no Oriente, cegamente e sem crítica. Coerentemente, tem-se que enfrentar uma de duas alternativas. Ou se lamenta o "atraso" do Oriente que nunca desenvolveu um Escolasticismo próprio. Ou se retirar para a "Época Antiga", de maneira mais ou menos arqueológica, e praticar o que tem sido descrito astutamente como a "teologia da repetição". Esta última posição é, na verdade, simplesmente, uma forma peculiar de "escolasticismo" imitativo.
Hoje em dia, não é raro que seja sugerido que, provavelmente, "a Época dos Padres" tenha terminado muito antes de São João Damasceno. Muito frequentemente, não se vai além da Época de Justiniano, ou então do Conselho de Calcedónia. Não foi Leôncio de Bizâncio, já o "primeiro dos Escolásticos"? Psicologicamente, esta atitude é bastante compreensível, apesar de não poder ser justificada teologicamente. De facto, os Padres do Quarto Século são muito mais impressionantes, e sua grandeza única não pode ser negada. No entanto, a Igreja permaneceu completamente viva também depois de Nicéia e Calcedónia. A actual super ênfase nos "primeiros cinco séculos", distorce perigosamente a visão teológica, e impede o correcto entendimento do próprio dogma de Calcedónia. O decreto do Sexto Concílio Ecuménico é frequentemente visto como um "apêndice" de Calcedónia, interessando só aos especialistas teológicos, e a grande figura de São Máximo, o Confessor, é quase que completamente ignorada. Coerentemente, o significado teológico do Sétimo Concílio Ecuménico é perigosamente obscurecido. E se fica pensando, porque a Festa da Ortodoxia deveria se relacionar com a comemoração da vitória da Igreja sobre os Iconoclastas. Não foi ela uma controvérsia simplesmente "ritualista"? Nós frequentemente esquecemos que a famosa fórmula do Consensus Quinquaesecularis [acordo dos cinco séculos], o que significa até Calcedónia, foi uma fórmula Protestante, e reflecte uma peculiar "teologia da história" Protestante. Foi uma fórmula restritiva, apesar dela ter parecido bastante inclusiva para aqueles que queriam se afastar da Época Apostólica. A questão é, no entanto, que a actual fórmula Oriental dos "Sete Concílios Ecuménicos", não é muito melhor, se ela tender, como quase sempre o faz, a restringir ou limitar a autoridade espiritual da Igreja aos oito primeiros séculos, como se a "Idade Dourada" do Cristianismo tivesse passado, e nós estivéssemos agora, já provavelmente, na Idade de Ferro, muito mais baixos na escala do vigor e autoridade espirituais. Nosso pensamento teológico foi perigosamente afectado pelo padrão de decaimento, adoptado pela interpretação da história Cristã no Ocidente desde a Reforma. A plenitude da Igreja foi então interpretada de maneira estática, e a atitude para com a Antiguidade tem sido, correspondentemente, distorcida e mal construída. Finalmente, não faz diferença se nós restringimos a autoridade normativa da Igreja a um, cinco ou oito séculos. Não deveria haver nenhuma restrição. Consequentemente, não há espaço para qualquer "teologia de repetição". A Igreja ainda é completamente autoritativa como ela foi nos tempos passados, já que o Espírito de Verdade a vivifica agora não menos efectivamente do que no passado.

O Legado da Teologia Bizantina

Um dos resultados da nossa descuidada periodização é que nós simplesmente ignoramos o legado da Teologia Bizantina. Estamos preparados, agora mais do que há algumas décadas atrás, a admitir a autoridade perene "dos Padres", especialmente a partir do renascimento dos estudos Patrísticos no Ocidente. Mas ainda tendemos a limitar o escopo da admissão, e obviamente "Teólogos Bizantinos" não são prontamente contados entre os "Padres". Estamos inclinados a discriminar bastante rigidamente entre "Patrística" — em um sentido mais ou menos estreito — e "Bizantinismo". Ainda estamos inclinados a olhar o Bizantinismo como uma consequência inferior da Época Patrística. Ainda temos dúvidas sobre a relevância normativa para o pensamento teológico. Porém, a Teologia Bizantina foi muito mais do que uma simples "repetição" da Teologia Patrística, e nem o que foi novo nela foi de qualidade inferior em comparação com a "Antiguidade Cristã". Na verdade, a Teologia Bizantina foi uma continuação orgânica da Época Patrística. Houve qualquer interrupção? O ethos da Igreja Ortodoxa Oriental foi alguma vez mudado, em algum ponto histórico ou data, que, no entanto, nunca foi unanimemente identificado, de modo que os últimos desenvolvimentos fossem de menor autoridade e importância, que qualquer outro? Esta admissão parece estar silenciosamente implicada nos compromissos restritivos dos Sete Concílios Ecuménicos. Então São Simeão o Novo Teólogo e São Gregório Palamas são simplesmente deixados de fora, e os grandes Concílios Hesicastas do século catorze são ignorados e esquecidos. Qual é a posição e autoridade deles na Igreja?
Porém, de facto, São Simeão e São Gregório são ainda mestres e inspiradores autoritativos de todos aqueles que, na Igreja Ortodoxa, estão lutando pela perfeição, e estão vivendo a vida de oração e contemplação, seja nas comunidades monásticas sobreviventes, ou na solidão dos desertos, ou até mesmo no mundo. Estas pessoas fiéis não estão cientes de nenhuma alegada "quebra" entre "Patrística" e "Bizantinismo". A Filokalia, esta grande enciclopédia da piedade Oriental, que inclui escritos de muitos séculos, está, em nossos dias, crescentemente se tornando o manual de guia e instrução para todos aqueles que estão desejosos de praticar a Ortodoxia em nossa situação contemporânea. A autoridade do compilador da Filokalia São Nicodemos da Santa Montanha, foi recentemente reconhecido e melhorado por sua formal canonização na Igreja. Neste sentido, somos levados a dizer, "a Época dos Padres" ainda continua na "Igreja Venerante". Não deveria continuar também na nossa busca e estudo teológicos, pesquisas e instrução? Não deveríamos recuperar a "mente dos Padres" também em nosso pensamento e ensinamento teológico? Recuperá-la, de facto, não como uma maneira ou pose arcaica, e não simplesmente como uma venerável relíquia, mas como uma atitude existencial, como uma orientação espiritual. Somente desta maneira pode a nossa teologia se reintegrar na plenitude de nossa existência Cristã. Na é suficiente manter uma "Liturgia Bizantina", como fazemos, restaurar a iconografia Bizantina e a música Bizantina, como ainda estamos relutando em fazer consistentemente, e praticar certas maneiras Bizantinas de devoção. Tem-se que ir para as próprias raízes desta tradicional "piedade", e recuperara a "mente Patrística". De outra forma poderemos estar em perigo de ficarmos divididos internamente — como muitos em nosso meio estão na verdade — entre as formas "tradicionais" de "piedade" e um hábito muito não-tradicional de pensamento. É um perigo real. Como "reverenciadores" nós estamos ainda na "tradição dos Padres". Não deveríamos estar, consciente e declaradamente, na mesma tradição também como "teólogos", como testemunhas e professores de Ortodoxia? Poderemos manter nossa integridade de alguma outra forma?

São Gregório Palamas e a Theosis

Todas estas considerações preliminares são altamente relevantes para nosso propósito imediato. Qual é o legado teológico de São Gregório Palamas? São Gregório não era um teólogo especulativo. Era um monge e um bispo. Ele não estava preocupado com problemas abstractos de filosofia, apesar dele ser bem treinado neste campo também. Ele só se interessava por problemas da existência Cristã. Como teólogo, ele era simplesmente um intérprete da experiência espiritual da Igreja. Quase todos os seus escritos, excepto provavelmente suas homilias, foram escritos ocasionais. Ele esteve lutando com problemas do seu próprio tempo. E foi um tempo crítico, uma época de controvérsia e ansiedade. Porém, foi também uma época de renovação espiritual.
São Gregório ficou suspeito de inovações subversivas por parte de seus inimigos ainda na sua própria época. Esta acusação ainda é mantida contra ele no Ocidente. Mas, no entanto, São Gregório estava profundamente enraizado na tradição. Não é difícil rastrear a maioria de suas maneiras de ver e motivos para trás até os Padres Capadócios e São Máximo o Confessor, que era, por sinal, um dos mestres mais populares do pensamento e devoção Bizantinos. Além disto, São Gregório também estava profundamente informado sobre os escritos do Pseudo-Dinis. Ele estava enraizado na tradição. Porém, de maneira nenhuma, era a sua teologia simplesmente uma "teologia de repetição". Ela foi uma extensão criativa da tradição antiga. Seu ponto-de-partida foi Vida em Cristo.
De todos os temas da teologia de São Gregório, destaquemos somente um, o crucial, e o mais controverso. Qual é o carácter básico da existência Cristã? O objectivo e propósito final da vida humana foi definido pela tradição Patrística como a θεωσις [theosis, divinização]. O tema é bastante ofensivo ao ouvido humano moderno. Ele não pode ser adequadamente traduzido em nenhuma língua moderna, nem mesmo em latim. Mesmo em grego ele é muito pesado e pretensioso. Na verdade, é uma palavra desafiadora. O significado da palavra, no entanto é simples e lúcido. Foi um dos termos cruciais no vocabulário Patrístico. Basta, neste ponto, citar Santo Atanásio. Ele se tornou homem para nos divinizar em si próprio. [Γεγονεν γαρ ανθρωπος, ιν ημας εν εαυτω θεοποιηση (Ad Adelphium 4)]. Ele Se tornou homem para que nós pudéssemos ser divinizados [αυτος γαρ ενηνθρωπησεν, ινα ημεις θεοποιηθωμεν (De Incarnatione 54)]. Santo Atanásio, na verdade, resume aqui a ideia favorita de Santo Irineu: «qui propter immensam dilectionem suam factus est quod sumus nos, uti nos perficeret esse quod est ipse» [Que, através do Seu imenso amor, Se tornou o que nós somos, para que Ele pudesse nos levar, até mesmo, para o que Ele próprio é (Adv. Haeres. V, Praefatio)]. Esta era a convicção comum dos Padres gregos. Pode-se citar São Gregório de Nazianzeno, São Gregório de Nissa, São Cirilo de Alexandria, São Máximo, e ainda São Simeão o Novo Teólogo. O homem sempre permanece o que é, isto é — criatura. Mas ele recebeu a promessa e concessão, pelo Verbo ter Se tornado homem, de uma participação íntima no que é Divino: Vida Eterna e incorruptível. A principal característica da «theosis» é, de acordo com os Padres, precisamente a "imortalidade" ou "incorrupção". Pois só Deus "tem imortalidade" — ο μονος εχων αθανασιαν (I Tim. 6, 16). Mas o homem é agora admitido numa íntima "comunhão" com Deus, através de Cristo e pelo poder do Espírito Santo. E isto é muito mais que simplesmente uma comunhão "moral", e muito mais que simplesmente que uma perfeição moral. Somente a palavra «theosis» pode traduzir adequadamente o carácter único da promessa e da oferta. O termo «theosis» é, na verdade muito embaraçador, se nós pensarmos em categorias "ontológicas". Na verdade, o homem simplesmente não pode "se tornar" deus. Mas os Padres estiveram pensando em termos "pessoais", e o mistério da comunhão pessoal estava envolvido neste ponto. «Theosis» significava um encontro pessoal. É o intercurso íntimo de Deus como o homem, no qual o todo da existência humana fica, como se fosse, permeado pela Presença Divina.
Porém, o problema permanece: Como pode mesmo este intercurso ser compatível com a Transcendência Divina? E este é o ponto crucial. O homem realmente encontra Deus, verdadeiramente e de facto, nesta vida presente de oração? Ou, não há mais do que um «actio in distans»? A alegação comum dos Padres do Oriente era que, na sua ascensão devocional, o homem, de facto, encontra Deus e contempla a Sua eterna Glória. Porém, como é possível, se Deus habita na "Sua luz inaproximável"? O paradoxo era extremamente profundo na Teologia Oriental, que estava sempre comprometida com a crença de que Deus era absolutamente incompreensível — ακαταληπτος — e incognoscível na Sua natureza ou essência. Esta convicção foi poderosamente expressa pelos padres Capadócios, especialmente na sua luta contra Eunomius, e também por São João Crisóstomo, em seus magníficos discursos. Περι Ακαταληπτου. Assim, se Deus é absolutamente " inaproximável" em Sua essência, e de acordo com Sua essência simplesmente não pode ser "comunicado", como pode, de todo, a «theosis» ser possível? "Insulta-Se Deus se se procura compreender Seu Ser essencial", diz João Crisóstomo. Já em Santo Atanásio nós encontramos uma clara distinção entre a própria "essência" de Deus e Seus poderes e generosidade: [Ele está em tudo por Seu amor, mas antes de tudo por Sua própria natureza - Και εν πασι μεν εστι κατά την εαυτου αγαθοτητα, εξω δε των παντων παλιν εστι κατά τηνιδιαν φυσιν (De Decretis II)]. A mesma concepção foi cuidadosamente elaborada pelos Capadócios. A "essência de Deus" é absolutamente inacessível para o ser humano, diz São Basílio (Adv. Eunomium 1:14). Nós conhecemos Deus somente em Suas acções, e por Suas acções: [Nós dizemos que nós conhecemos nosso Deus por Suas energias (actividades), mas nós não professamos ser possível aproximar-se de Sua essência — pois Suas energias descem até nós, mas Sua essência permanece inacessível - Ημεις δε εκ μεν των ενεργειων γνωριζειν λεγομεν τον Θεον ημων, τη δε ουσια προσεγγιζειν ουχ υπισχνουμεθα αι μεν γαρ ενεργειαι αυτου προς ημας καταβαινουσιν, η δε ουσια αυτου μενει απροσιτος Epist. 234, ad Amphilochium)]. Porém, isto é um verdadeiro conhecimento não simplesmente uma conjectura ou dedução: αι ενεργειαι αυτου προς ημας καταβαινουσιν. Na frase de São João Damasceno, estas acções ou "energias" de Deus são a verdadeira revelação do próprio Deus: η θεια ελλαμψις και ενεργεια (De Fide Orth. 1: 14). É uma presença real, e não simplesmente uma certa «praesentia» operativa, «sicut agens adest ei in quod agit» [como o actor está presente na coisa em que ele age]. Este modo misterioso da Presença Divina, apesar da absoluta transcendência da Divina Essência, ultrapassa todo conhecimento. Mas não é menos certo por isto.
São Gregório Palamas permanece na antiga tradição neste ponto. Em Suas "energias" o Deus inaproximável aproxima-se do homem. E este movimento Divino efectua encontros: προοδος εις τα εξω, na frase de São Máximo (Scholia in De Div. Nom. 1: 5).
São Gregório começa com a distinção entre "graça" e "essência": a Divina e Divinizadora iluminação e graça não é a essência, mas a energia de Deus; [η θεια και θεοποιος ελλαμψις και χαρις ουκ ουσια, αλλ’ ενεργεια εστι Θεου; Capita Phys., Theol., etc., 68-9]. Esta distinção básica foi formalmente aceite e elaborada nos Grandes Concílios de Constantinopla de 1341 e 1351. Aqueles que negassem esta distinção eram anatematizados e excomungados. Os anátemas de 1351 foram incluídos no rito do Domingo da Ortodoxia no Triódio. Os Teólogos Ortodoxos foram obrigados por esta decisão. A essência de Deus é absolutamente incomunicável [αμεθεκτη]. A fonte e poder da «theosis» humana não é a Divina essência, mas a "Graça de Deus": a energia divinizadora, por participação daquele que é divinizado, é uma graça divina, mas de modo algum a essência de Deus; [θεοποιος ενεργεια, ης τα μετεχοντα θεουνται, θεια τις εστι χαρις, αλλ’ ουχ η φυσις του Θεου ibid. 92-3]. Charis [χαρις] não é idêntica com a ousia [ουσια]. É a Divina e incriada Graça e Energia; [θεια και ακτιστος χαρις και ενεργεια ibid 69]. Esta distinção, no entanto, não implica em ou efectua divisão ou separação. Nem é um simples "acidente", ουτε συμβεβηκοτος (ibid., 127). As Energias "procedem" de Deus e manifestam Seu próprio Ser. O termo προιεναι [proienai, proceder] simplesmente sugere διακρισιν [diakrisin, distinção], mas não uma divisão: a graça do Espírito é diferente da Substância, porém não é separada Dela; [ει και διενηνοχε της φυσεως, ου διασπαται η του Πνευματος χαρις; Theophan, p. 940].
Na verdade todo ensinamento teológico de São Gregório pressupõe a acção do Deus Pessoal. Deus Se move para o homem e o abraça por Sua própria "graça" ou "acção", sem deixar aquela luz inaproximável [φος απροσιτον], na qual Ele habita eternamente. O propósito definitivo da teologia de São Gregório foi defender a experiência Cristã. Salvação é mais do que perdão. É uma genuína renovação do homem. E esta renovação é efectuada não por descarga ou liberação, de certas energias naturais implicadas no próprio ser criado do homem, mas pelas "energias" do próprio Deus, que ai encontra e envolve o homem, e o admite em comunhão consigo. De facto, o ensinamento de São Gregório afecta o sistema todo de teologia, o corpo todo da Doutrina Cristã. Ele começa com a clara distinção entre "natureza" e "vontade" de Deus. Esta distinção também era característica da tradição Oriental, ao menos desde Santo Atanásio. Neste ponto pode-se perguntar: esta distinção é compatível com a "simplicidade de Deus"? Não deveríamos ver todas estas distinções como meras conjecturas lógicas, necessárias para nós, mas definitivamente sem nenhum significado ontológico? De facto, São Gregório foi atacado por seus oponentes precisamente deste ponto-de-vista. O Ser de Deus é simples, e Nele, inclusive, todos os atributos coincidem. Já Santo Agostinho divergiu neste ponto da tradição do Oriente. Sob as pressuposições de Santo Agostinho o ensinamento de São Gregório é inaceitável e absurdo. O próprio São Gregório antecipou a abrangência das implicações da sua distinção básica. Se não se aceita ela, ele argumentou, então seria impossível distinguir claramente entre a "geração" do Filho e a "criação" do mundo, sendo ambos actos da essência, e isto conduziria a uma completa confusão na Doutrina Trinitária. São Gregório foi bastante formal neste ponto.
Se, de acordo com os oponentes delirantes e com aqueles que concordam com eles, a Divina energia não difere de modo algum da Divina essência, então o acto de criar, que pertence à vontade, não diferirá de modo algum da geração (γενναν) e da processão (εκορευειν), que pertence à essência. Se criar não é diferente de geração e processão, então as criaturas não diferenciariam de maneira nenhuma do Gerado (γεννηματος) e do Projectado (οβληματος). E se este é o caso, de acordo com eles, então ambos, o Gerado e o Projectado não seriam, de modo algum, diferentes das criaturas, e as criaturas seriam tanto os gerados (γεννηματα) quanto os projectados (ροβληματα) de Deus Pai, e a criação seria deificada e Deus estaria revestido de criaturas. Por esta razão o venerável Cirilo, mostrando a diferença entre a essência e a energia de Deus, diz que a geração pertence à Divina natureza, enquanto a criação pertence às Suas Divinas energias. Isto ele mostra claramente dizendo: "natureza e energia não são o mesmo". Se a Divina essência de modo algum difere das Divinas energias, então gerar (γενναν) e projectar (εκρευειν) nγo tem diferença com criar (οιειν). Deus o Pai cria pelo Filho e no Espírito Santo. Então Ele também gera e projecta pelo Filho e no Espírito Santo, de acordo com a opinião dos oponentes e daqueles que concordam com eles (Capita 96 e 97).
São Gregório cita São Cirilo de Alexandria. Mas São Cirilo, neste ponto, estava simplesmente repetindo Santo Atanásio. Este, em sua refutação do Arianismo, enfatizou formalmente a diferença entre ουσια [essência] e φυσις [substância], de um lado e a βουλησις (vontade) do outro. Deus existe, e então Ele também age. Há uma certa "necessidade" no Ser Divino, na verdade não uma necessidade de compulsão, e não «fatum», mas uma necessidade do Ser em Si. Deus simplesmente é o que é. Mas a vontade de Deus é eminentemente livre. Em nenhum sentido, Ele é necessitado de fazer o que Ele faz. Assim γεννησις [geração] é sempre κατάφυσιν [de acordo com a essência], mas criação é uma βουλησεοςεργον [energia da vontade] (Contra Arianos III. 64-6). Estas duas dimensões, esta de ser e aquela de agir, são diferentes e devem ser claramente distinguidas. Por certo, esta distinção não compromete, de modo algum, a Divina "simplicidade". Porém, é uma distinção real, e não simplesmente um dispositivo lógico. São Gregório estava completamente consciente da crucial importância desta distinção. Neste ponto ele era um verdadeiro sucessor do grande Santo Atanásio e dos Hierarcas Capadócios.
Foi recentemente sugerido que a teologia de São Gregório, deveria ser descrita, em termos modernos, como uma "teologia existencialista". Porém, ela difere radicalmente dos conceitos modernos que são actualmente cunhados com este rótulo. Na verdade, de toda forma, São Gregório foi definitivamente oposto a todos os tipos de "teologias essencialistas" que falham em considerar a liberdade de Deus, o dinamismo da vontade de Deus, a realidade da acção Divina. São Gregório rastrearia sua tendência para trás até Orígenes. Esta era a situação difícil da metafísica impessoal grega. Se há qualquer espaço para uma metafísica de todo Cristã, ela tem que ser uma metafísica de pessoas. O ponto inicial da teologia de São Gregório foi a história da salvação: em escala maior, a história das Escrituras, que consiste em actos Divinos, culminando com a Encarnação do Verbo e Sua glorificação através da Cruz e Ressurreição; na escala menor, a história do homem Cristão lutando pela perfeição, e ascendendo passo-a-passo, até encontrar Deus na visão de Sua glória. Era normal descrever a teologia de São Irineu como uma "teologia de factos". Com não menos justificativa nós devemos descrever também a teologia de São Gregório Palamas como uma "teologia de factos".
No nosso tempo, nós estamos chegando cada vez mais à convicção de que a "teologia de factos" é a única Teologia Ortodoxa sã. Ela é Escriturística. Ela é Patrística. Ela está em completa conformidade com a mente da Igreja. Em relação a isto, nós devemos encarar São Gregório Palamas como nosso guia e professor, em nosso esforço por teologizar do ponto-de-vista do coração da Igreja.

Notas Finais

Tem sido sugerido recentemente que os Gnósticos foram, de facto, os primeiros a invocar formalmente a autoridade de uma "Tradição Apostólica", e que foi este uso por eles que moveu São Irineu a elaborar seu próprio conceito de tradição. Em todo caso, os Gnósticos costumavam se referir à «Tradição».

 

Arcebispo Primaz Katholikos

S.B. Dom ++ Paulo Jorge de Laureano – Vieira y Saragoça
(Mar Alexander I da Hispânea)



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Última actualização deste Link em 14 de Janeiro de 2014